sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

''Ioseph, fili David...''

Neste dia 23 de janeiro em que no calendário antigo da Igreja se celebrava o noivado de Maria Santíssima e São José, contemplemos os mistérios, os medos e as graças divinais que circundaram todo esse ditoso acontecimento. Assim como o Divino Espírito, hoje São José com toda a Igreja quer ser casar misticamente com Maria, numa união profunda e inseparável. Cantemos como no Apocalipse: ''Eis que as núpcias de São José (e toda a Igreja n'Ele) se aproximam! Sua Esposa se enfeitou, se vestiu de linho puríssimo e resplandecente.'' (1)
  


''Ioseph, fili David, noli timére accípere Maríam cónjugem tuam.''

''José, filho de Davi, não tenhas medo de receber Maria como tua esposa.’’ (2)

Sem dúvida, essas riquíssimas e profundíssimas palavras – que contêm admiráveis mistérios da mais mística e divina união que se pode ter visto na terra – são parte de um dos trechos mais belos e, permita-me dizer: o mais significativo de toda a Escritura na vida de um ''Todo de Maria''. Pois eis que aí a Rainha Soberana de todos os seus escravos de amor está nas mãos de seu noivo São José, ou seja, está sujeita a justiça exigida pela lei de Moisés - que ordenava que as mulheres adúlteras (que fossem infiéis aos seus maridos) fossem apedrejadas na porta da casa de seus pais - ou a injustiça de ser aceita cegamente por ele. Mas eis que por ser servo fiel e prudente e, acima de tudo, inabalável em sua confiança na castidade de sua noiva puríssima, Ele não a entrega precipitadamente ao martírio de pedradas – e já aí devemos a Ele toda nossa gratidão por ser guardião zeloso da integridade de nossa Mãe – e aqui me chama atenção uma coisa, pois Ele que era homem justo, como revela a mesma Escritura, comete uma injustiça contra a lei mosaica para não cometer o que costumeiramente seria a justiça contra o suposto adultério de Maria. Mas como? Como Ele poderia acreditar que sua puríssima noiva, por quem Ele se apaixonou tão ternamente, se encantou por sua beleza interior que se refletia no seu exterior, em seu olhar tão ingênuo, pudesse cometer algo tão sujo, tão impuro? Algo ali então se encontrava além dos limites do que Ele podia entender. Imaginemos o quão tentado Ele deve ter sido a duvidar da pureza daquela que era a própria Pureza em pessoa, por quem Ele tão ardorosamente esperava dizer com sua vida e com sua boca: ‘’Meu amor’’ ou ‘’Como és bela’’ ou ainda: ‘’És toda para mim e eu todo para ti’’.

Ah, mas que admirável paciência e verdadeiro amor de São José por sua jovenzinha, pois como diz a Escritura: ‘’não quis difamá-la’’ e por isso ‘’resolveu rejeitá-la secretamente’’ (3). Aqui coloquemo-nos, ousadamente, no lugar de São José – nós, pecadores e ingratos – o quão tenderíamos a entregar Maria o mais rápido possível para ser cruelmente morta! Iríamos pensar que nosso amor não foi correspondido, que formos traídos e que não merecíamos tal mulher. Mas feliz e louvado seja São José, o eleito entre todos os homens, varão sábio e persistente, que mesmo se perturbando com toda a situação, não deixou de pensar sobre ela. Mesmo cercado de medo, não se deixou abater, pois estava cheio de confiança em Deus, mesmo diante daquele incompressível mistério que tomava conta do seu justíssimo coração.

Mas eis que pensativo, cai em sono. Ele que enquanto o corpo descansava, velava pelo Amor de sua vida em seu coração. Não seria um sono como os demais. O sono mais divino e gracioso que já se passou nesse mundo, pois eis que um anjo vem em socorro do esposo de sua Imperatriz e Dona. O anjo lhe fala sobre o mistério da divina Encarnação no ventre de Maria, e para um coração temeroso como era o dele naquela circunstância, mas que era constante em sua paixão terna, ou seja, em seu amor que sofria profundamente por perder sua virgenzinha, nada melhor que o anjo usasse o remédio do sacratíssimo nome dela para que ele pudesse ser livre de todo medo e confusão. E o fez verdadeiramente, com doçura angelical: “José, não tenhas medo de receber MARIA’’. Eis aqui o centro de toda a festa do noivado, ou do próprio casamento da Imaculada com seu Esposo digníssimo. 



''Despertando, José recebeu em sua casa sua esposa'' (4)
E eis que São José compreende o que se passava: era um milagre no seio daquela que é o Milagre dos milagres. E já desperto, não demora por nenhum instante em ir cumprir o que o anjo lhe havia ordenado. Eis que possuindo em seu coração uma felicidade indescritível, vai ao encontro de sua Felicidade vivente e por ele, amada de modo tão inefável. Ó de quanta alegria já deveria encher nossos corações só de meditar e pensar nessas santas e divinas carícias de tais amáveis esposos. 

Sim, pois aquele amor entre a Virgem e São José era reflexo de outro amor d’Ela com seu outro Esposo. Alguns, que já estão penetrados nesse mistério do amor entre Maria e José, devem se perguntar que amor é esse a que me refiro. Então, vamos por partes pensando na relação (que todos nós conhecemos) que a Senhora nossa tem com a Santíssima Trindade: Filha predileta do Pai; Mãe do Filho e ESPOSA do Divino Espírito. Vejam que maravilha dos céus! Pois quem de nós, ó homens, foi chamado e escolhido a ser de modo pleno e excelente aqui na terra, participante de um matrimônio divino e singular entre a Virgem e o Espírito Santo? Óh, nenhum de nós e nem os anjos pois como canta a Igreja: ‘’Só tu, ó São José, merecestes à Virgem se unir em casta união’’. (5)

Digo isso porque olhando com os olhos somente da carne podemos ver uma simples união matrimonial como todas as outras, mas não são assim as coisas divinas, elas são perfeitas, ou seja, completas, então o sagrado matrimônio da Soberana e do seu castíssimo esposo ultrapassou o plano carnal, sendo elevado a um grau de devoção, de confiança, de nobreza e singela gratidão recíproca entre eles, ou seja, um amor onde um se entregava completamente nos braços do outro. Vemos nisso, por exemplo, a humildade daquela que é a própria Humildade encarnada, onde com seu Filho nos braços, é protegida e defendida, não somente materialmente falando – como na perseguição do inimigo Herodes (figura do nosso adversário, o demônio) – mas também, espiritualmente falando, onde São José é o guardião de sua admirável pureza, de sua virgindade, onde Ele vê n’Ela um mistério de uma mulher incomum – e logo por essa donzela pura e inocente que Ele se apaixonou –. E aqui exclamo: ó homem invejado pelos próprios anjos, por ter se unido a Rainha deles, da qual esses espíritos gloriosos perguntam encantados: ''quem é esta'' (6), de modo incomparável.

Hoje em dia, é comum certas pessoas terem uma mentalidade escrupulosa ao pensar em se tornarem fiéis e verdadeiros devotos de sua Mãe Imaculada, de d'Ela se aproximarem com mais ardor e constância. Um medo que torna a devoção dessas pessoas, uma devoção falsa, coisa tal que São Luís – grande devoto de Maria – condena veementemente em seu tratado da verdadeira devoção. Mas hoje nos é oferecido uma solução para que esses falsos temores sejam arrancados de nossas almas, e tal solução é o que hoje mesmo celebramos e meditamos – o medo semelhante que José teve – mas que ao soar as palavras do anjo da Senhora, o mesmo desapareceu de seu coração. 


‘’Meu zelo e meu amor por vossa casa me devoram como fogo abrasador.'' (7)


São José pode exclamar seu amor com essas palavras com mais razão do que Davi. Ora, aquele que é o fiel esposo de Maria conheceu a Casa aonde o Altíssimo que nem os céus puderam conter, repousou e foi modelado e não um templo de pedras sem vida como acontece com o salmista. De fato, cantamos com toda a Igreja na ladainha lauretana que a mesma Virgem é a ‘’Arca da Aliança’’, a ‘’Casa de ouro’’. Sim, Ela é por excelência e perfeição o Santuário onde Deus mora e encontra suas delícias, pois é feito não de um ouro material, mas de um ouro místico, infinitamente mais nobre: o ouro da verdadeira beleza que é de sua preciosa alma. Por essa formosura suprema São José se apaixonou com todo o seu ser. De fato, incendiado de um amor divino, se tornou o protetor zeloso de sua misteriosa virgindade e com um profundo respeito por aquele Templo, não ousou em tocá-lo. E consideremos então, não cada dia, ou hora ou cada minuto, mas sim cada instante que passava o quanto aquele amor sublime que o ‘’devorava como fogo abrasador’’ crescia de modo misterioso em sua alma. Ele, pobre carpinteiro que poderia ter mais filhos com outra mulher e assim, quem sabe, ter mais prestígio com sua profissão, resolveu se ocultar, ou melhor, se exilar com sua Maria, possuindo um coração que bate uníssono com o dela. Eis o mais excelso devoto de Maria: aquele que desejou possuir um só coração com a Dona de nossos corações e ser seu fidelíssimo servo.

Mas é preciso lembrar que não só de êxtases viveu esse beatíssimo casal, que com certeza foi o mais feliz que pisou no chão desse mundo. Na verdade, eles que tiveram as maiores alegrias, tiveram as maiores dores: passaram por sofrimentos e lágrimas, como na terrível perseguição de Herodes e a fuga na noite escura e sombria para o Egito. Mas aqui penso, sobretudo, naquele momento sofrido de sua morte ao se despedir de sua Felicidade em pessoa, o quão sofreu seu coração e o de sua Esposa, mas é tão verdade que foi a morte mais doce, pois estava ao lado de seu Jesus e de sua Maria. Sim, uma vida repleta de sentido, de paz celestial e conforto mesmo nas maiores dores e adversidades que se podem passar aqui na terra. Tal vida excelsa teve aqui na terra e isso, porque Ele não temeu em receber Maria como sua esposa. E hoje nos céus, profundamente unido a Ela, zela por nós, seus filhos e por toda a Igreja que caminha nesse mundo, que depois de sua virgenzinha deposita n’Ele toda sua confiança e que hoje quer dizer n’Ele, por Ele e com Ele: ‘’Meu zelo e meu amor por vossa casa me devoram como fogo abrasador.''                                      

Por isso, roguemos prostrados diante de São José que lhe sejamos fiéis e agradecidos devotos, e que sua presença constante em nossas vidas mude nossa mentalidade tão torta sobre Aquela que Ele se tornou tal fiel guardião. Hoje nos consagremos a São José, esposo de Maria de corpo e de alma, esposo por excelência, e n’Ele e em seu amor possamos cada dia mais também sermos mais unidos a Imaculada como nossa Esposa. Que o Espírito Santo, o divino Esposo de sua encantadora Maria, acenda em nossas almas o amor de Jesus (como cantamos num cântico tradicional da Igreja), e me pergunto: quem o amor de Jesus a não ser sua Mãe? Sim, Ela é o amor e a delícia de toda a Trindade Santíssima. E hoje podemos contemplar o glorioso São José que foi o primeiro a ter sua alma incendiada por esse Divino Espírito de sapiencial desejo de conhecer Maria, de poder contemplá-La de perto, de falar com Ela com intimidade antes nunca vista, de ter a mesma alegria de Deus ao chamá-la de ‘’meu amor’’ e por fim, de poder mergulhar nos seus mistérios insondáveis até aos olhares dos próprios anjos... Sim, mergulhemo-nos, como fez nosso pai e senhor José justíssimo, no infinito mar de mistérios que é Maria Santíssima, e para isso, querendo ter todo amor e afeto dele infundido em nossas pequeninas almas, escutemos essas palavras angelicais cujo ditoso varão teve a graça primeira de ouvi-las: ‘’José, filho de Davi, não tenhas medo de receber Maria como tua esposa.’’ 


Notas:


(1) Apocalipse 19, 7.

(2) Mateus 1, 20.

(3) Mateus 1, 19.

(4) Mateus 1, 24.

(5) Trecho do hino das I e II Vésperas do dia 19 de março, Solenidade de São José (Liturgia das Horas). Versão da CNBB. 

(6) Cântico dos cânticos 3, 6; 6, 10; 8, 5.

(7) Salmo 68(69), 10.

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